segunda-feira, 20 de abril de 2015

Vedação ao confisco: garantia inútil, correção a caminho

Vedação ao confisco: garantia inútil, correção a caminho
Como forma de proteger os contribuintes contra eventuais excessos tributários do Estado, a Constituição trouxe uma vedação ao confisco nos seguintes termos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:IV – utilizar tributo com efeito de confisco;
Segundo o dicionário, confisco é “apreender em favor do fisco”. A ideia de “confiscar” está próxima de “tomar algo de alguém”, assumindo assim caráter punitivo.
O conceito de “efeito confiscatório” decorrente dos tributos é um tema sobre o qual ainda não há consenso.
Vendo pelo aspecto punitivo, tal limitação seria desnecessária pois, por definição, o tributo não constitui de sanção de ato ilícito.
Tal princípio deve ser visto como a impossibilidade de alguém vir a perder propriedade sua para o Fisco em virtude da tributação, ou seja, proibir que a tributação atinja níveis tão elevados de modo a provocar a perda de qualquer bem ou seu equivalente em dinheiro. Deriva da necessária observância da capacidade contributiva.
Para Baleeiro, os tributos com efeito confiscatório são aqueles “…que absorvem parte considerável do valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem o exercício da atividade lícita e moral”[2].
A partir de que nível o tributo passa a ostentar natureza confiscatória?
Embora não haja consenso, a definição do nível de tributação a partir do qual se tem o efeito confiscatório deve levar em conta o princípio da razoabilidade e o da proporcionalidade. Verdade é que não há critério objetivo para se dizer de efeito confiscatório.
O princípio da não utilização de tributo com efeito de confisco dá-se, também, pela falta de correspondência entre a punição de um ato ilícito e a cobrança de um tributo.
A vedação ao confisco é dirigida ao gênero tributo.
Seria possível exigir uma taxa com efeito confiscatório?
Nessa situação, não se pode entender o confisco como o instituto que aniquila a capacidade contributiva, posto que a existência dessa capacidade é irrelevante para a fixação do valor da taxa.
Considerando que a taxa tem por objetivo indenizar o custo que o Estado teve na prestação do serviço público, seu valor deverá ser algo próximo desse custo. Caso o valor da taxa seja significativamente superior ao custo de prestação do respectivo serviço, estaremos diante de uma situação confiscatória.
O STF[3] já manifestou entendimento de que a verificação do efeito confiscatório deve tomar em conta a carga tributária como um todo e não apenas um tributo de forma isolada.
“Ementa – … A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. … – A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte – considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. – O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. …”[4]
Desse entendimento, necessidade de observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, deriva a possibilidade de tributos com natureza nitidamente extrafiscal, como é o caso dos impostos incidentes sobre o comércio exterior, virem a ter suas alíquotas fixadas de forma proibitiva.
Imagine, como exemplo, um perfume importado sujeito a uma alíquota de Imposto de Importação igual a 100%.
Não se trata aqui de dizer de ser essa exceção ao princípio do não confisco pois exceção não há. Mesmo que assim não fosse, já se viu que o reconhecimento do efeito confiscatório reclama a análise da carga tributária como um todo.
Outro tema sobre o qual não há consenso: as multas absurdas, da ordem de 200%, apresentam natureza confiscatória? Se a resposta for afirmativa, restaria afrontado o princípio do não confisco?
Machado entende que a multa encontra-se ao desabrigo da proteção, pois tributo e multa, evidentemente, não se confundem. Outra corrente, que tem expoente na pessoa do prof. Ives Gandra, entende que ao vedar o uso do tributo com efeito confiscatório o constituinte se referiu à obrigação principal, ou seja, aquela que tem por objeto levar dinheiro ao Estado, seja decorrente do tributo ou da penalidade.
O STF tem manifestado entendimento no sentido de afastar a aplicação de penalidades de caráter confiscatório. Tome-se como exemplo a ADI 551 ajuizada “…pelo Governador do Rio de Janeiro, que a apresentou contra dispositivo da Constituição daquele Estado que determinava não poderem as multas por infrações tributárias ser inferiores a duas vezes o valor do tributo, quando por falta de recolhimento, e a cinco vezes, quando resultantes de sonegação de tributo”.[5]
“EMENTA: …. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal. Ação julgada procedente.”[6]
O Poder Judiciário pode, em sede de controle normativo abstrato, reconhecer o efeito confiscatório ainda que se trate de multa fiscal.
Dos votos proferidos nesse julgamento fica clara a dificuldade de se saber a partir de que ponto determinada carga tributária é confiscatória:
“…esse problema da vedação de tributos confiscatórios que a jurisprudência do Tribunal estende às multas gera, às vezes, uma certa dificuldade de identificação do ponto a partir de quando passa a ser confiscatório  (…) Também não sei a que altura um tributo ou uma multa se torna confiscatório; mas uma multa de duas vezes o valor do tributo, por mero retardamento de sua satisfação, ou de cinco vezes, em caso de sonegação, certamente sei que é confiscatório e desproporcional.”[7]
“Portanto, penso que se pode invocar o art. 150, inciso IV, da Constituição Federal, e, obviamente, o princípio da proporcionalidade na acepção que este Tribunal tem lhe emprestado do devido processo legal no sentido substancial ou substantivo.”[8]
“Constatamos que as multas são acessórias, e não podem, como tal, ultrapassar o valor do principal. No caso, quando se cogita de multa de duas vezes o valor do principal – que é o tributo não recolhido – ou de cinco vezes, na hipótese de sonegação, verifica-se o abandono dessa premissa e dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.”[9]
Note que o ministro Marco Aurélio parece sugerir a aplicação da limitação prevista no art. 412 do Código Civil:
Art. 412.  O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.
Fazendo uma síntese do que até aqui foi exposto temos:
  1. Não há definição jurisprudencial de confisco;
  2. Não há definição de limites para se extremar o confiscatório do não confiscatório;
  3. Para se dizer de efeito confiscatório é necessário avaliar a carga tributária total suportada por cada indivíduo;
  4. Tal proteção também aplicável às penalidades tributárias.
É de concluir então a total inutilidade dessa garantia pois não há como aplicá-la diante da falta de seus elementos definidores. Eventual aplicação dessa garantia às multas tributárias absurdas decorre de julgamentos pontuais e da aplicação subjetiva dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Para grata surpresa dos contribuintes, o Supremo Tribunal Federal sinalizou haver uma luz no fim do túnel que leva à correção dessa situação.
O jornal Valor Econômico, em sua edição do dia 26/01/2015, trouxe em sua capa notícia Assim versada:
“Contribuintes multados em valores bem superiores ao tributo devido poderão reduzir o montante a ser pago ao Fisco. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal determinou que multa aplicada ao contribuinte não pode ser superior a 100% do valor do tributo. Na Receita Federal, as multas começam em 75% por sonegação e podem chegar a 225% se o contribuinte criar “embaraço à fiscalização”. No Estado de São Paulo, a autuação pode ser de 300% por deixar de recolher o ICMS decorrente do uso do Emissor de Cupom Fiscal. O resultado são débitos muito elevados, que às vezes podem até mesmo quebrar a empresa.”[10]
Embora ainda se tenha uma multa bastante elevada (100%), a decisão tomada pela 1ª Turma do STF, tem o mérito de definir um parâmetro que possa definir o que seja multa tributária com efeito confiscatório.
Lado outro, vislumbra-se a possibilidade de sucesso em ações de repetição de indébito que tenham por objeto reaver valores já pagos e relativos a multas fixadas em alíquotas superiores a 100%.
Vale que lembrar que o passar do tempo elimina o direito à restituição cujo prazo prescricional é de cinco anos contados a partir da extinção do crédito tributário.
Para um ano novo tão carente de boas notícias, essa não deixa de ser uma notícia interessante.
[1] 35 anos de experiência profissional diversificada, sendo 12 deles em cargos gerenciais exercidos em empresas de grande porte e seguimentos variados. Advogado militante por 15 anos com atuação destacada nos ramos do direito tributário e empresarial.
[2] (Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 1997)
[3] ADC-MC 8/DF
[4] ADC 08, com nosso grifo.
[5] (Ovalle, 2009)
[6] ADI 551
[7] Ministro Sepúlveda Pertence
[8] Ministro Gilmar Mendes
[9] Ministro Marco Aurélio
[10] http://www.valor.com.br/legislacao/3877404/supremo-decide-que-multa-fiscal-nao-pode-ser-maior-que-100